terça-feira, 1 de abril de 2014

"moinho"

vento balança copa
nogueira
vento que venta mais
na beira
vento lá da maré
é cheia
vento que canta e chama
sereia
vento em lua nova
inteira
vento de céu aberto
esteia
vento que traz barulho
traineira
vento de maresia
permeia
vento que volta o cuspe
bobeira
vento transporta duna
carreia
vento que sopra à face
tonteia
vento na capoeira
volteia
vento que corre o rio
na veia
vento que traz o mar.


 Atafona/SJB, 28/12/1999

"reencontro em kioni" (p/ aluysio e ernest)

no porto, da linha em riste
às mãos gretadas do grego
emergiu do azul o dourado
à beira do píer de pedra
na baía nordeste de ítaca

fisgado das entranhas o outubro
outono, pelo anzol do verão
morte na vida do pescador
e mais quem um pai me contou
— cavalo de tróia das iscas

olhos traduzidos a surdo
testemunharam a luta do peixe
mudo, com sangue nas guelras
carnações da ilha de odisseu
da última respiração de laerte


campos, 12/11/12




"asas" (p/ meu pai)

amarelo de van gogh
blues me impele a pintar
chuva estala dedos na batida
e água escorre na telha
entre as teclas do sax

solo sonhado
nos sonos do samurai
como o bardo
como édipo rei
para quem matar é traição

torrente verte mais forte
sobre idolatria de papel
que molha, seca
mas se escreve todo dia
até o sol nascer


campos, 13/10/98

"órbita de hal" (p/ kapi)

vida que fica
da morte vivida
incerteza de tempo
espaço sem lida
de quando o sol explodir
gauloises, vermute, atafona
corda que sufoca lenta
antes do cadafalso abrir
vírus ou cosmos
sertões e mares
amores antigos
extintos senhores da terra
gritos de fome no ninho
vigor que se sente
esperança da gente
quando descobrir
é tudo que resta


campos, 02/12/97

"uivo"

lobby nas fotos brincos sem lóbulo
— lembranças por lobo
com brancos caninos
à caça de luas

verão na varanda
visões à vera, veredas

julietas diversas
vararam veronas
com manteiga
no miolo quente do pão


atafona, 20/02/07

"muda"

a memória sai da toca
sobe pela palafita
ainda escorrendo lama

e me fita
com olhos de caranguejo
entre as tábuas do piso
do bar do espanhol
quando o pontal era ponta
tinha fé de igreja
e luz de farol

na boca do mangue
passei minha rede de arrasto
mas só peguei filhotes de bagre
que me ferraram o pé
ao chutá-los de volta à água
até que pedro me ensinou
a pegar pitu de mão
entre raízes do mato
na beira do alagadiço

hoje passo no mangue
e não piso na lama
mas na asfixia lenta
dos aterros do homem
e do avanço do mar
perto das ilhas da convivência e pessanha
siamesas da mesma terra
onde ficou minha casca da muda
de caranguejo a espera-maré


atafona, 06/2000

"o trapezista"

vi ao passar um menino
de ponta a cabeça no muro
pendurado por trás dos joelhos
na favela que não mais existe

era bela a imagem, pensei,
e anotei numa borda de mim
na estrada, guiando ao rio
pra viagem sem data a poema

distante de tantas estradas
e destinos e descaminhos
daquele trapézio sem rede
quedei outra vez no menino

e na vertigem que dele me afasta
batida sempre a menos no peito
dois meninos como ele, do quarto
me equilibram entre seus risos


atafona, 04/08/13

"sexta-feira santa" (p/ edil)


mijo espumando

pedra de índio
negro no sítio
com café na garrafa
e panela areada
à espera de alguém
sítio no morro
que já foi do índio
hoje do quase branco
que cerca o barranco
barranco da pedra
morro da santa
bife na mesa
não na panela areada
do negro do morro
que o rio contorna
no curso da mente
onde coisas pequenas
para quem sabe que acaba
duram pra sempre


cambuci, 11/04/98

"direções"


beber a vida
suar você
lamber o sal


atobás e boeings
comungam molduras
sob os arcos da lapa

passado diz presente
por um prato de comida
na fila de indigentes

menina cheira cola
menina vende halls
gestantes do amanhã

onde acena o lixeiro
desencarna o sol
no jazigo do oeste

onde o palhaço dança
abençoa o cruzeiro
os risos do sul

meu norte na música
do bom combate
espanta cães e amizades

beber o mundo
no sal da lágrima
do que ficou para trás


rio, 29/03/06

"beijo"

beijo beijado na mente mil vezes
em década de desejo resignado
consumado quando menos se espera

sem saber se de alô ou adeus
sem certeza ou finalidade
apenas línguas roçando nervosas
como pipas cruzando no espaço


campos, 12/01/96

"finados"

se a chuva que cai sobre mim
cair também sobre ela
que minha lembrança a aqueça

a conta-gotas
dos pingos às folhas
das folhas à terra

que minha lembrança se enrosque
à raiz de uma erva daninha
daquelas que brotam de novo
depois da erva arrancada

se a chuva que cai sobre mim
cair também sobre ela
que minha lembrança adormeça
em sonhos de carnes fartas
revista de língua na alma
deitado no colo dela


atafona, 02/11/03

"a passista"


o samba que ela leva nos pés
morena crioula em quadris
do pontal de atafona ao humaitá

são sebastião, flecha goitacá
cupido mestre-sala de mim


rio, 24/02/09

"aurora"

dia desses, madrugada alta
insone, acordei a mulher
para matar saudades do adolescente

ébrio, na beira da praia, à espera do sol,
que buscava ouvir o mar chiando ao parir brasa

acompanhado, reconstituí a cena
tendo como elemento novo, além da mulher,
a barricada baixa de nuvens no final do horizonte
deflorada lentamente pelos dedos róseos do poeta

ela olhou e disse que as nuvens pareciam algodão doce
pensei e a mim lembraram ilha grande
que quando avistada da ilha seguinte
vê-se não ilha, mas continente;
imaginei após a amurada interna do forte
dos que querem manter como está
e já saem à guerra vencidos;
recordaram-me também a serra do imbé
fazendo fundos com a planície dos extintos
lhe dando vértebras;
ou ainda a conseqüência do recife
no qual convergissem todas as ondas do atlântico
açoitando a pedra e espalhando espuma
como o cheiro do quarto no amor

o sol nasceu entre nuvens e metáforas
contemplei-o até a cegueira
beijei a mulher e me despedi de homero
que fez do ouro seu anel de noivado
e saiu comendo algodão doce


atafona, 15/04/2000

"anfiteatro"

corpo de quatro
crucificado de bruços
no parapeito

sob outro corpo
suado e agudo
como páris
nas muralhas
sobre helena

dos goitacá
aos troianos
uma planície
é uma planície
é uma planície
onde gregos espreitam
o que já foi
e não pode voltar a ser

cruza de savary
com ivan junqueira
quando saio de ti
útero afora
como um deus
no triângulo
caio da ponta
batendo em retirada
da fortaleza


atafona, 08/10/06

"beijo de baco"


das luzes da praça
diante à catedral
não se espera o salvador

nem milagres

são belas apenas
iluminando a chuva
e o que há de divino
está nessa beleza
brilhada nos olhos

independência pisca
querendo colo
como o cafuné
depois da bofetada
no bandoneón de piazzolla

o vinho derramado
só se multiplica
misturado à saliva
do beijo da atriz


campos, 05/11/06

"ícaro voador"


na descoberta do eixo
ele gira seu pequeno corpo
busca com os olhos

me identifica neles
simula espanto
e ri
ri estridente como os anjos
agita seus bracinhos morenos
bate palmas
e leva as mãos à boca
escancarada em riso
desdentada e ávida de gostos

eu, que nunca cri
ser motivo de tanta alegria
por estar ao lado de alguém
percebo meu choro
no reflexo dos seus olhos


cambuci, 15/11/99

"previsão do tempo"


chuva longe
sobre ela
chega aqui

choro do rio
verte versos
na cheia das chamas

chamada longa
cupido pleonasmo
com flecha fonema

flerte do sol
seduz a noite
ejaculada de raios

enroscado à raiz
duma erva daninha
danada de flor


campos, 09/02/07

"antropofagia"

sua boca
quase muda
cala faca


sua língua
por falo
não fala

sua boca
com fome
geme tudo
que come


campos, 27/11/07

"T"

um crocodilo da austrália
desses que vivem nos mares
e em nossas impossibilidades

enamorou-se de um avião
e quis copular

o avião tinha mãe carola
que não falava dessas coisas
despreparado, foi parar no fundo do mar
prenhe de mitos mestiços
com corpo de crocodilo e asas


atafona, 07/06/2000

"resgate"

morena alitera marina
caymmi dentro de mim
fios na vinha dos cachos
negros qual asas de índia

navega o castanho do rio
até a foz nos meus olhos
dali, só o oceano, menina
o samba salgado do mar

face e quadris feitos píer
açoita o desejo das ondas
náufrago dado na praia
e salvo sobre você

"réveillon"


dorso sobre o dorso das ondas
calmas, d’além da arrebentação
arrepiou ao cafuné de iemanjás

à deriva da última tarde do ano

despertou do sono dos peixes
na fisga doce da chuva à boca
mas joão com valentia de água
sonhou acordado todas as cores

arpoador trespassou sua alma
em oferenda na ponta da pedra
e seu corpo no tato de um cego
doeu ouvidos atentos ao barco
pegou a areia do fundo na mão


rio, 02/01/14

"ornitologia"


meninos eu vi
nas ruínas da marinha
dois picapaus amarelos


um voou,
o outro ficou
pousado na cerca

o que voou
fez seu pouso
em monteiro lobato


atafona, 27/07/06

"contramão na pelinca"


mentiram pra mim
a chance que deram
era longa

e me acho azarado
não sei ver tempo passar
da paz que provei
só com o ar do pulmão
só, no fundo do mar

ih! fodeu!
acima cedendo abaixo
crânio arrebentando no chão
caminhar na encruzilhada
com a certeza das três puxadas na vara
de quando o peixe bate na linha
e não se aporrinha mais o pai
por ter confundido com onda

enquanto coço buraco da cabeça
robert johnson e trago no cigarro
lembro
fico viajando
sem dar muita bola
não nasci na planície
mas habito tempo demais
para lembrar
não sei subir morros
não tenho o sublime da pessoa
escrevo estes versos
só pra exorcizar


campos, 07/11/96